Texto CG1A1
Observando os mineiros trabalharem, você percebe, por um breve instante, como são diferentes os universos habitados por diferentes pessoas. Os subterrâneos onde se escava o carvão são uma espécie de mundo à parte, e é fácil viver toda uma vida sem jamais ouvir falar dele. É provável que a maioria das pessoas até prefira não ouvir falar dele. E, contudo, esse mundo é a contraparte indispensável do nosso mundo da superfície. Praticamente tudo que fazemos, desde tomar um sorvete até atravessar o Atlântico, desde assar um filão de pão até escrever um romance, envolve usar carvão, direta ou indiretamente. Para todas as artes da paz, o carvão é necessário; e, se a guerra irrompe, é ainda mais necessário. Em épocas de revolução, o mineiro precisa continuar trabalhando, do contrário a revolução tem que parar, pois o carvão é essencial tanto para a revolta como para a reação. Seja lá o que for que aconteça na superfície, as pás e picaretas têm que continuar escavando sem trégua — ou fazendo uma pausa de algumas semanas, no máximo. Porém, de modo geral, não temos consciência disso; todos sabemos que “precisamos de carvão”, mas raramente, ou nunca, nos lembramos de tudo o que está envolvido no processo para se obter carvão.
Aqui estou eu escrevendo, sentado diante da minha confortável lareira a carvão. De quinze em quinze dias, a carroça de carvão para na porta e uns homens de blusão de couro trazem o carvão para dentro de casa em sacos robustos, cheirando a piche, e o despejam no depósito de carvão embaixo da escada. É só muito raramente, quando faço um esforço mental bem definido, que estabeleço a conexão entre esse carvão e o penoso trabalho realizado lá longe, nas minas. É apenas “carvão”, algo que eu preciso ter, uma coisa escura que chega misteriosamente, vinda de nenhum lugar em especial, como o maná, só que devemos pagar por ele.
Seria fácil atravessar de carro todo o norte da Inglaterra sem lembrar, nem uma só vez, que, dezenas de metros abaixo da estrada, os mineiros estão atacando o carvão com suas picaretas. E, contudo, são eles que estão fazendo seu carro andar. O mundo deles lá embaixo, iluminado por suas lâmpadas, é tão necessário para o mundo da superfície, da luz do dia, como a raiz é necessária para a flor.
George Orwell. O caminho para Wigan Pier. Trad. Isa Mara Lando.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010 (com adaptações).